As terras indígenas e o planejamento territorial brasileiro

Consultor Jurídico
OPINIÃO
17 de setembro de 2023, 16h19

Por Pedro Puttini Mendes

Em abril de 2020 foi publicada a Instrução Normativa nº 09/2020 da Funai, que trouxe segurança jurídica para o planejamento territorial brasileiro em meio aos processos que envolvem áreas de discussão de demarcações de terras indígenas.

A Instrução Normativa da Funai nº 9/2020 de 16 de abril fez modificações no processo de certificação dos limites de imóveis, alterando a emissão de um documento chamado Declaração de Reconhecimento de Limites, que serve para fornecer aos proprietários ou possuidores imóveis privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas.


Mário Vilela/Funai
O destaque na expressão homologadas foi proposital, pois existem também terras indígenas sob estudo (não concluídas) chamadas de "delimitadas", ou seja, apenas a indicação do local de estudo pela Funai e as "declaradas" em portaria do atual Ministério dos Povos Indígenas, ou seja, validando a delimitação da Funai para prosseguir com o estudo da demarcação.

Os processos administrativos de demarcação de terras indígenas apenas se encerram após três principais atos administrativos, em respeito às premissas constitucionais da legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, que são: 1) a assinatura de portaria declaratória pelo Ministério dos Povos Indígenas (não mais do Ministério da Justiça) [1]; 2) o decreto de homologação do presidente da República e; 3) a transferência do imóvel em matrícula, do antigo proprietário para o patrimônio da União, o que normalmente é feito pela Funai em posse dos documentos anteriores.

A homologação de terras indígenas ocorre quando o Presidente da República emite o decreto de homologação, como anunciado pelo atual Governo desde o mês de abril/2023, no sentido de que seriam demarcadas "todas as terras indígenas do país até o final do mandato, em 2026".

Para que o processo de demarcação chegue até a presidência da república precisa passar por uma série de etapas, estudos e procedimentos [2] determinados pelo Decreto Federal nº 1.775/1996, regulamentador do Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973), especificamente do artigo 17, inciso I que trata das terras tradicionalmente ocupadas, em que se discute o "marco temporal" [3].

Estes processos duram anos, décadas e transitam por sucessivos governos. Enquanto isso, aqueles que são proprietários dos imóveis rurais sob estudo de demarcação necessitam cumprir a lei, realizando procedimentos como a certificação de georreferenciamento no Incra e a inscrição do imóvel no Cadastro Ambiental Rural (CAR) junto aos órgãos ambientais estaduais.

Além do mais, durante este tempo de tramitação, os proprietários, que devem manter o imóvel produtivo, cumprir obrigações ambientais e cadastrais, também exercem direitos de propriedade e posse, como por exemplo a compra e venda, desmembramento, sucessão familiar, arrendamento, parcerias rurais, usufruto, usucapião, enfim.

Em meio a este contexto, a Funai insere os polígonos das áreas "em estudo" (delimitadas, declaradas) nos sistemas dos referidos órgãos públicos (Incra, cartórios imobiliários, órgãos ambientais), praticando evidentes atos ilegais de afronta ao direito de propriedade e posse previstos pela Constituição e demais legislações.

É gravíssima a conduta praticada pela Funai, impedindo o exercício de direitos inerentes à posse e propriedade, como o bloqueio de processos de certificação de georreferenciamento, impedimento de validação dos dados do CAR, impedimento de atos registrais imobiliários (compra e venda, desmembramentos, condomínios, multipropriedade), além da dificuldade de acesso às políticas públicas agrícolas como de crédito rural, garantias bancárias e outros abusos.

A "certificação" está relacionado à um dos cadastros obrigatórios de toda propriedade rural o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), feito através do sistema Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), onde são apresentados os limites georreferenciados de cada imóvel rural por meio de técnico com emissão de anotação de responsabilidade técnica, uma ferramenta criada em 2013, utilizada pelo Incra para certificar imóveis por obrigação legal.

O Decreto Federal nº 4.449/2002 afirma que a certificação do memorial descritivo pelo Incra apenas certifica que a poligonal objeto do memorial descritivo não sobrepõe outras poligonais que a certificação do memorial descritivo "não implicará reconhecimento do domínio", o que serve, por óbvio para regularização de divisas para ambos os envolvidos.

O Sigef trouxe transparência com a integração de dados fundiários de outros órgãos, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Cartórios de Registro de Imóveis, por outro lado, permitiu uma péssima gestão destas ferramentas por meio do abuso de poder de determinados gestores, resultando em insegurança jurídica e vulnerabilidade do planejamento territorial nacional.

Percebe-se que o problema está em permitir que informações sem validação oficial e sem cumprimento de etapas processuais legais de demarcação, impeçam a certificação de imóveis rurais, criando embaraços imobiliários, ambientais, bancários, fundiários e outras consequências, como ocorre também no Cadastro Ambiental Rural que já apontou sobreposições com terras indígenas geradas pelos dados inseridos pela Funai com relação às terras "identificadas" e "delimitadas", sem homologação por decreto presidencial.

A Instrução Normativa nº 09/2020, havia solucionado este impasse, considerando para fins de certificação de limites apenas as áreas homologadas por decreto presidencial, o que parece um tanto óbvio sob o ponto de vista jurídico, já que a existência de um processo demarcatório não pressupõe o seu êxito ou sucesso, que pode ser questionado por inúmeros fatores.

Eis que no dia 9 de agosto deste ano, a nova presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), revogou aquela instrução normativa, promulgando outra [4], a Instrução Normativa 30/2023.

São basicamente duas novidades em prejuízo da segurança jurídica e do planejamento territorial, a primeira delas é a determinação constante no artigo 7º de que "não será emitida" a Declaração de Reconhecimento de Limites para imóveis incidentes terras indígenas de ocupação tradicional "delimitadas", com Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação aprovado pela autoridade máxima da Funai e publicado no Diário Oficial da União; e terras indígenas de ocupação tradicional declaradas com Portaria Declaratória expedida pelo Ministro de Estado competente.

Neste sentido, já foi ponderado que, tecnicamente, só deveria ser considerada terra indígena, unidade de conservação ou alteração imobiliária com os devidos processos concluídos, em respeito à premissa constitucional do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e da legalidade.

Gravíssima situação pelo fato de que terras "delimitadas" pela Funai ou terras "declaradas" em portaria declaratória pelo Ministério competente, são etapas provisórias do processo de demarcação.

A outra novidade notícia é a que consta no artigo 5º da IN Funai 30/2023, determinando que a "Declaração de Reconhecimento de Limites" não será fornecida a terceiros que não sejam detentores do imóvel ou seu representante legal.

Evidentemente esta situação representa um entrave para segurança jurídica em transações imobiliárias, impedindo que pretensos compradores ou até mesmo posseiros como arrendatários, parceiros, situações de usucapião, possam certificar-se da situação fundiária destes locais.

Portanto, na forma como consta, a Funai acabará praticando atos que restringem a posse e propriedade de imóveis ainda não homologados como terras indígenas, violando direitos dominiais.

Além do mais, voltam a ser obscuros e subjetivos os critérios para emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites, pela falta de atendimento à legislação competente, prejudicando a certificação de inúmeros imóveis do país, pequenos, médios ou grandes, em razão das sobreposições topográficas.

Sendo assim, a nova instrução normativa trouxe prejuízos ao planejamento territorial e violação de direitos de propriedade e posse, como também a possibilidade de responsabilidade civil-administrativa e penal [5], bem como a possibilidade da prática de ato de improbidade administrativa [6], dos agentes públicos envolvidos com a não emissão da declaração de limites, impedimento de certificação, impossibilidade de validação do CAR e bloqueios comerciais pela sobreposição.


[1] Sobre o assunto https://www.conjur.com.br/2023-jan-27/puttini-mendes-qual-ministerio-decide-demarcacao; Acesso em 31/08/2023.

[2] Sobre as etapas do processo de demarcação e os direitos dos envolvidos, vale conferir o artigo: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/analise-processual-transversal-da-demarcacao-de-terras-tradicionalmente-ocupadas-por-indigenas-e-sua-judicializacao/

[3] Sobre o assunto https://agribrasilis.com/2023/06/23/marco-temporal-terras-indigenas/. Acesso em 31/08/2023.

[4] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-funai-n-30-de-9-de-agosto-de-2023-502742547. Acesso em 31/08/2023.

[5] Lei Federal nº 8.112/1990, artigos 124 e 125.

[6] Lei Federal nº 8.429/1992, artigos 9º a 11.

Pedro Puttini Mendes é advogado e professor de Direito Agrário e Ambiental, autor, coautor e organizador de livros em direito agrário e ambiental. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, mestre em Desenvolvimento Local (2019) pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro fundador da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental). Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-MS entre 2013/2015.

Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2023, 16h19